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Por Ludmila Costhek Abílio e Silvia Maria Santiago | Diretoria executiva de Direitos Humanos, Unicamp

“Este dossiê tem como objetivo denunciar violações dos direitos humanos associadas ao trabalho dos motofretistas, também conhecidos como motoboys e, mais recentemente, como entregadores. A análise evidencia os elementos estruturantes e as consequências da uberização do trabalho, fenômeno que não se restringe aos motoboys; pelo contrário, apresenta-se como tendência que atravessa o mundo do trabalho como um todo. Nesse sentido, o dossiê se constitui como um instrumento para o poder público e os atores da sociedade civil envolvidos na promoção da vida digna e justa para todos os trabalhadores e trabalhadoras.

Os resultados apresentados referem-se à pesquisa realizada pela Diretoria Executiva de Direitos Humanos da Unicamp. A pesquisa é um desdobramento de uma Ação de Saúde realizada pela Força Tarefa da Unicamp contra a covid–19 em janeiro de 2021, dirigida a esses trabalhadores. Ela identificou condições de trabalho e saúde precárias, que exigiam melhor compreensão. Em 2023 foi então realizada a investigação com 200 motofretistas, analisando-se múltiplos aspectos sobre condições laborais e sanitárias.

O dossiê está estruturado da seguinte maneira: 1) trata-se inicialmente de aspectos conceituais e estudos recentes sobre a uberização do trabalho, tendo como objetivo prover instrumentos analíticos para o debate público sobre a uberização do trabalho; 2) são apresentadas uma síntese dos resultados seguida de análise detalhada da pesquisa com os motofretistas na cidade de Campinas; 3) no final, são feitas recomendações para o enfrentamento da situação encontrada e da uberização do trabalho em geral.

O trabalho digno é construtor de cidadania, em sua dimensão individual e comunitária. A Declaração Universal de Direitos Humanos (Assembleia Geral ONU, 1948), proclamada na Assembleia Geral das Nações Unidas (idem, Resolução 217, A3) em 10 de dezembro de 1948, guia o reconhecimento da violação dos direitos humanos associada ao trabalho aqui escrutinado. A Declaração inicia com o reconhecimento de todas as pessoas como membros do que denomina família humana e de que dignidade e direitos iguais na sociedade são bens inalienáveis e fundamentos da liberdade, justiça e paz no mundo. Composta por 30 artigos que descrevem as condições para a vida digna, contém em seu artigo 23º a referência ao trabalho, que considera que:

1. todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego;
2. todo ser humano, sem distinção, têm o direito a igual remuneração por igual trabalho;
3. todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social;
4. todo ser humano tem o direito de organizar sindicatos e neles ingressar para a proteção de seus interesses.

A investigação que resulta neste dossiê constitui uma das importantes iniciativas que hoje tecem o campo de pesquisa sobre a uberização do trabalho e que agrega pesquisadoras e pesquisadores de todo o país. Diversas pesquisas evidenciam nos últimos anos que os processos de uberização de diferentes categorias promovem remunerações injustas e cada vez mais rebaixadas; condições de trabalho indignas, desigualdades complexas e obscuras entre os trabalhadores no que se refere a seus ganhos e ao acesso ao trabalho, além da centralização do acesso ao trabalho associada aos oligopólios das empresas.

Os resultados apresentados demonstram as violações dos direitos humanos, hoje cotidianas e disseminadas, que permeiam o trabalho dos motofretistas. Esses trabalhadores têm sua dignidade e integridade feridas em múltiplos aspectos, que podem e devem ser freados e combatidos pelo poder público. Novas metodologias e procedimentos foram utilizados para investigar a relação entre trabalho e saúde em seus em diversas dimensões. A pesquisa evidencia que a uberização aprofunda mecanismos de intensificação do trabalho, de extensão de jornada laboral, de transferência de riscos e custos para os trabalhadores, além de ser um vetor poderoso na eliminação de direitos e garantias associados ao trabalho. A degradação do trabalho dos motofretistas associa-se à degradação da saúde, além de acarretar o incremento de acidentes de trânsito associados a motocicletas (e também bicicletas), inclusive aqueles com vítimas fatais.

A uberização apresenta-se como uma tendência que permeia as relações de trabalho em geral, mas sua concretização se dá de modo heterogêneo, de acordo com a articulação de desigualdades em contextos locais, regionais e nacionais. O dossiê apresenta os efeitos ainda mais deletérios que incidem especificamente em trabalhadores negros no Brasil. Em outras palavras: as mudanças contemporâneas do trabalho atingem os trabalhadores e trabalhadoras em geral, promovendo processos de precarização e degradação, mas esses processos ocorrem de forma intensa, acelerada e menos regulada com aqueles que estão submetidos e expostos de forma mais profunda à articulação das abissais desigualdades e injustiças sociais do país. No Brasil, portanto, negras e negros estão na linha de frente do avassalador processo de uberização. Nesse sentido, essa nova forma de organização do trabalho hoje aprofunda desigualdades raciais e seus modos de reprodução, transferindo aos trabalhadores negros condições ainda mais precárias e precarizadas, desprotegidas e cada vez mais arriscadas e insalubres.

Trabalhadores negros são a maioria dos motoboys e bikeboys. A pesquisa desvela um cenário de muita gravidade envolvendo trabalhadores sem acesso a água potável, banheiro, pontos de descanso; apresentam desidratação, incidências alarmantes de pressão alta, de alimentação inapropriada e de acidentes, em especial acidentes graves; jornadas superextensas de trabalho, condições de trabalho instáveis e inseguras que os colocam em permanente estresse; soma-se a isso o rebaixamento do valor de seu trabalho. Esse rebaixamento garante que hoje estejam inseridos de forma ampliada nas mais diversas cadeias produtivas e na reprodução social de outros trabalhadores e trabalhadoras, mas de forma cada vez mais precarizada.

Como dito, em sua maioria negros, esses trabalhadores colocam sua vida e sua integridade em risco cotidianamente pelas ruas da cidade, arcando em seus próprios corpos com formas contemporâneas de exploração que precisam ser reconhecidas e freadas. Reconhecer a subordinação praticada pelas empresas, responsabilizá-las e regular esse trabalho é garantir condições mínimas de saúde, segurança e dignidade aos motofretistas e a outros trabalhadores que já estão sendo submetidos aos processos de uberização. É, também, reconhecer os custos em suas dimensões psicossocial, racial, econômica que a uberização do trabalho acarreta para a sociedade e para o Estado. Hoje, o sistema de saúde torna-se, também ele, vítima da uberização, recolhendo, salvando e enterrando aqueles que dão a vida pela circulação de mercadorias como modo de sobrevivência.”

Confira abaixo o dossiê que tem como objetivo denunciar as violações dos direitos humanos sofridas durante o trabalho dos motofretistas (motoboys).

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