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A descoberta de si mesmo, de que ele pode ser mais do que já lhe disseram que é, faz Carlos* (nome fictício, assim como os demais assinalados com asterisco) me contar sobre o motivo do seu interesse no cursinho pré-vestibular virtual do programa Colmeias Unicamp, que começou a cursar este ano, no período noturno. Ele é um dos 40 inscritos, em 2023, da Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente) – ligada à Secretaria Estadual da Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo. No ano passado, cinco adolescentes da fundação ingressaram em diferentes universidades de um total de 30 que participaram apenas seis meses do cursinho virtual. Aos 17 anos, Carlos também quer ser aprovado para se tornar eletricista de carro, como o pai. Quer mudar sua vida com os estudos, para conseguir um “trabalho honesto e bom”, como ele descreve. Acredita que estudando e trabalhando não terá “motivo para voltar a essa vida” – que o levou à detenção.

Trazido por um agente da Fundação Casa, ele caminha de chinelos nos pés em minha direção, na sala de aula da unidade de detenção Casa Campinas, onde há quatro meses cumpre medida socioeducativa. Senta-se na cadeira à minha frente, de costas para a câmera, e fala que, mesmo privado de liberdade, ampliou suas perspectivas e esperanças, reconhecendo seu potencial. “Estou tendo a oportunidade de estudar. Quero fazer uma faculdade por meio desse curso, aprender um pouco mais.”

audiodescrição: Ilustração Colmeia de Rafaela Repasch

Desde o segundo semestre de 2022, meninos e meninas da fundação que cursam ou concluíram o ensino médio – cerca de 50% do total de 4.989 adolescentes das 111 unidades espalhadas por todo o Estado – podem acrescentar as aulas noturnas do cursinho pré-vestibular virtual do Colmeias à sua enorme rotina de atividades socioeducativas, destinadas aos internos que cumprem sentenças de seis meses a três anos de internação. Criado pela professora Josely Rimoli e pelo professor Marcelo Maialle, ambos da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA), o Colmeias foi instituido como um programa de extensão da Pró-reitoria de Extensão e Cultura (ProEC) da Unicamp em 2022. Começou em Limeira, em 2010, com um cursinho pré-vestibular presencial com aulas voltadas para comunidades carentes e periféricas e ministradas por estudantes da Unicamp. Em 2021, durante a pandemia, o cursinho implantou um projeto-piloto de aulas virtuais e abriu vagas para indígenas e quilombolas de todo o país. Em 2022, chegou à Fundação Casa. A adolescente Lúcia* (ouça áudio abaixo), interna há dois anos e três meses em uma unidade de outra cidade do interior paulista, foi aprovada em três cursos diferentes após as aulas do Colmeias. “Eu não sabia que eu tinha esse potencial.”

‘Quero estudar para mostrar outro caminho’

Audiodescrição: imagem em preto e branco,

Minha conversa com Carlos foi rápida, mas suficiente para ele me falar que, muito além do conteúdo das aulas virtuais, ele aprende sobre o direito à educação e à saúde que ele tem como cidadão. Carlos se levanta e é levado, enquanto mais um aluno do cursinho é trazido para uma conversa em que não posso perguntar seu nome nem o que o levou à internação – imagens que o identifiquem também são proibidas (por questões de proteção ao menor adolescente). Josué*, de 17 anos, está há três meses na fundação e tem participado das aulas virtuais noturnas do Colmeias. Determinado, diz que quer “seguir outro rumo”, o mesmo de seu irmão que cursa Ciências Sociais e foi também aluno do programa, fora da fundação. Josué quer fazer Engenharia Civil, inspirado no padrasto, que é mestre de obras. “Eu acordei aqui. Vou me recuperar e sair regenerado, com outra mente. Vou estudar, fazer faculdade e mudar de vida, para dar orgulho à minha mãe.” Com o cursinho, disse que está “aprendendo muitas coisas que lá fora não aprendia”.

Tragédia social

Na sala onde conversei com os meninos, estávamos cercados por mesas, computadores e servidores, além das câmeras. Para chegar até lá, a equipe de reportagem – formada pelo fotógrafo Felipe Bezerra, o cinegrafista Marcos Botelho Jr. e eu – passou por grades, portas de segurança e a revista feita por uma policial com um detector de metais. Estávamos presos ali, física e metaforicamente. Eu me prendi às histórias de Carlos e de Josué, tanto quanto à de Lúcia, com quem conversei por telefone.

Audiodescrição: imagem em preto e branco,

São relatos que revelam a inexorável realidade de que em cada jovem ali detido há enorme potência e riqueza, tornando mais palpáveis para mim as palavras da médica Silvia Santiago (foto) sobre a triste tragédia da nossa sociedade, que encarcera os indivíduos mais fortes e inteligentes das comunidades carentes, onde muitos são aliciados pelo crime.

Santiago coordena a Diretoria Executiva de Direitos Humanos (DeDH) da Unicamp e encabeçou o processo que levou à formalização do convênio, em 2018, entre a Universidade, o Ministério Público e a Fundação Casa, prestes a ser renovado. Há cinco anos, teve início o atendimento médico realizado por estudantes de Medicina, que foi uma derivação de uma ação já existente e coordenada pela própria Santiago, na Penitenciária Feminina de Campinas (confira na linha do tempo). O cursinho pré-vestibular virtual do Colmeias chegou em 2022 para ampliar o convênio a partir de uma demanda levada à Unicamp pela promotora da Infância e da Juventude de Campinas Elisa De Divitiis Camuzzo, a mesma que havia procurado a Unicamp para oferecer atendimento médico aos adolescentes da fundação, em 2017.

No dia seguinte à nossa visita à Fundação Casa, nós visitamos a promotora Camuzzo no prédio do Ministério Público, na Cidade Judiciária de Campinas. “Ser aprovado não é o mais importante. É lógico que é muito bom, mas o mais importante é que o interno perceba que tem outras possibilidades de vida que não somente a prática infracional. O cursinho e o convênio trazem isso, o adolescente reconhece outras potencialidades”, diz a promotora, que atua na área há 26 anos. Segundo ela, o perfil do adolescente detido mudou muito. A escolaridade, por exemplo, aumentou. “Acho que jovens que antes não se envolviam com atos infracionais começaram a se envolver. Antes, não tínhamos sala de ensino médio. Talvez, o crime organizado esteja cooptando mais esses jovens, porque [o crime] é uma tentação para eles.”

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A promotora Elisa De Divitiis Camuzzo: “O adolescente reconhece outras potencialidades”

A promotora defende a renovação e a ampliação do convênio com a Unicamp, a fim de incluir áreas como artes, educação física e pedagogia. “Nós temos esperança com aqueles adolescentes, que estão descobrindo que podem fazer outras coisas.” Ela lembra que o Ministério Público fez a ponte entre a Universidade e a fundação. Como fiscalizadora do sistema, Camuzzo queria garantir o atendimento de saúde integral aos jovens. O Núcleo de Assessoria Técnica Psicossocial (NAT) do Ministério Público, que atua na área de políticas públicas, pediu apoio da Unicamp para elaborar um relatório sobre o estado de saúde dos internos nas unidades da fundação. Duas psicólogas do NAT, Alana Batistuta Manzi de Oliveira e Aydil da Fonseca Prudente, convidaram a professora Maria da Graça Garcia Andrade, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), para uma visita às unidades. Da comitiva também participaram os professores Paulo Velho e a já citada Santiago, ambos com experiência em atendimento e coordenação de estágios de estudantes de Medicina com populações vulneráveis. “Eles ficaram sensibilizados ao ver pessoas tão jovens confinadas”, diz Camuzzo, que precisou romper barreiras da própria Fundação Casa, inicialmente resistente a confiar na e perceber os benefícios da parceria. “A universidade pública precisa dar esse retorno à sociedade, ela tem muito a contribuir.”

Audiodescrição: imagem em preto e branco,

Educação em saúde

Antes de sairmos da unidade Casa Campinas, visitamos a enfermaria. Éric*, de 15 anos, tinha acabado de passar pela consulta médica com estudantes do quinto ano de Medicina da Unicamp. Segundo Éric, que está há três meses na fundação, além de cuidar da sua queixa, os médicos lhe deram muitas orientações. “Eles falaram para beber bastante água e fazer bastante exercício.” Sua mãe faleceu há dez anos e ele mora com os avós. Disse que participa de muitas atividades, desde cursos do Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) até aulas de capoeira. Seus planos, quando sair, são de fazer curso de cabeleireiro e abrir um salão com a irmã de 16 anos, que é manicure. “(A fundação) está me ajudando a pensar um pouco na vida aqui dentro”, reflete Éric, que disse ser muito bem tratado pelos médicos estagiários.

Os estudantes que atenderam Éric naquele dia foram Lídia Gomes e Pedro Bezerra, que faziam o último dia do estágio de Dermatologia e Atenção às Populações Vulneráveis da FCM. Além da fundação, eles atenderam no Centro de Saúde, na Penitenciária Feminina de Campinas e no Consultório na Rua. “No atendimento com os meninos, reforçamos que não somos juízes, nem polícia, não estamos aqui para julgar ninguém.”, diz Gomes.

Segundo Bezerra, o atendimento prestado a essas populações sempre o atraiu. “Há médicos que se formam sem atender pelo SUS [Sistema Único de Saúde], cujo princípio é o da saúde universal, do direito de todos à saúde. Mas nós aqui temos a possibilidade de exercer esse atendimento.” Apesar de limitadas, diz Bezerra, as consultas são muito importantes para os adolescentes, que muitas vezes nunca receberam um cuidado do tipo. “Nós falamos de exercícios físicos, alimentação, saúde mental, orientação sobre saúde sexual, além de fazermos sorologia e vacinação”, explica Gomes. Para os dois estudantes, o estágio reforçou a escolha que fizeram pela Medicina. Segundo a diretora da Unidade de Atenção Integral à Saúde do Adolescente e do Servidor (Uaisas), Marcela Quinelato Albuquerque, o atendimento realizado pelos estagiários é de longa duração e humanizado. “Tem um envolvimento e é integral.”

Desde 2001, o estágio faz parte da grade curricular do curso da FCM, inicialmente com atendimento em Unidades Básicas de Saúde (UBS), depois na Penitenciária Feminina de Campinas, em 2006. Os estudantes passaram a visitar semanalmente a Fundação Casa em 2019, acompanhados do médico e professor Paulo Velho.

Responsável pela inclusão desse estágio na reforma curricular da FCM, Paulo Velho (foto) realizava visitas aos adolescentes antes mesmo da assinatura do convênio, do qual é executor e defensor. “Precisamos mostrar a relevância desse projeto. O objetivo é fazer a coisa crescer. A grande maioria desses meninos vive uma realidade que puxa para o fundo. Eles precisam de esperança.”

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audiodescrição: Ilustração Abelha e estetoscópio de Rafaela Repasch

A partir do acordo, nas semanas em que Velho não está presente, seu ex-aluno e agora doutorando André Palma acompanha o atendimento feito pelos estagiários. A enfermaria oferece atendimento permanente nessa unidade da fundação, realizado por uma enfermeira servidora do Estado que também participa dos dias de consulta com os médicos estagiários. Velho também comparece a outra unidade da fundação, a Maestro Carlos Gomes, para as consultas com meninos reincidentes, local onde a reportagem não teve autorização para entrar e onde a Unicamp faz apenas o atendimento médico – não há aulas do cursinho virtual do Colmeias.

Convidado por Santiago a participar do atendimento médico instituído pelo convênio, Palma faz o acompanhamento dos estagiários. Pouquíssimas escolas de Medicina saem dos muros ou do hospital universitário, afirma Palma. “Eu acho que, quando formados, [os médicos que passaram por uma experiência semelhante] saberão reconhecer as vulnerabilidades, em qualquer situação. Falo para os estudantes de medicina que o mero fato de o adolescente estar presente na sala de consulta já significa um impacto em sua saúde e em sua vida. E nós não podemos fazer uma ‘sobrepena’, porque nos cabe somente cuidar. É desafiador”, avalia Palma, que coloca em prática o aprendizado que teve com Velho.

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Santiago e Velho são precursores das práticas dessa medicina social, que constitui a essência do convênio com o Ministério Público e a Fundação Casa. Desde 1985, antes mesmo da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1990, Santiago já se voltava para a população socioeconomicamente vulnerável. Em 2006, a médica ouviu um apelo da Penitenciária Feminina, que chegou a ela pelo Ministério Público. “É um movimento. Não é uma coisa que termina em si”, diz Velho, que foi aluno de Santiago na FCM. Foi a partir desse movimento que se formou uma cadeia de ações, inicialmente desconexas (como o Consultório na Rua e o cursinho pré-vestibular virtual do Colmeias), que se ligaram, no tempo e no espaço (veja a linha do tempo). O objetivo agora é expandir o convênio e incluir nele outras áreas do saber.

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O doutorando André Palma: acompanhamento do trabalho dos estagiários

Direito à saúde

“Um dia, em 2006, cheguei [à FCM] para trabalhar, e a diretora veio me perguntar se eu aceitaria atender as mulheres da Penitenciária Feminina”, lembra Santiago. Informada sobre o desprezo às populações carcerárias, extensivo a quem trabalha com essa população [os servidores], Santiago não se intimidou e começou a levar seus alunos para cuidar das mulheres detentas. Na época, havia uma população três vezes maior que a capacidade do local e o clima imperante era de tensão. Hoje a realidade é diferente: não há mais superlotação e o ambiente é de colaboração. “A equipe de servidores também se tornou parceira”, diz a médica. “As mulheres estavam adoecidas. Entre as 1.300 detentas, cerca de 35 estavam grávidas. Nesses anos todos, já são 17 anos, nunca perdemos uma única gestante nem um único bebê. São sempre casos muito difíceis. E elas se sentiram cidadãs de direito, conheceram o atendimento médico que mereciam ter.”

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Santiago lembra que a saúde é um direito também das populações vulneráveis, nas ruas ou em qualquer outro lugar. “Quando começamos a atender, foi sob essa perspectiva.” Junto com a médica psiquiatra Karina Diniz, da FCM, Santiago ajudou a organizar o Consultório na Rua, também como estágio, em 2017. “Eu vejo poucas perspectivas para o país se esses preconceitos não forem superados. Então, levar estudantes de uma faculdade prestigiosa como a nossa para um estágio como esse tem uma dimensão técnica, ética e de política de saúde. A gente tem que ter essa consciência social e precisa reconhecer a riqueza que pode haver nessas populações.”

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A realidade transforma

audiodescrição: Ilustração Abelha e laptop de Rafaela Repasch

Quando foi procurada pela promotora Camuzzo durante a pandemia para ajudar os adolescentes da Fundação Casa que estavam sem aula, Santiago chamou Josely Rimoli, do Colmeias, que aceitou o desafio e levou o cursinho virtual para a fundação no segundo semestre de 2022. O resultado foi surpreendente: cinco aprovações e uma formatura no ensino médio.

Uma das meninas passou na Fatec (Faculdade de Tecnologia de São Paulo) e a outra, em Biomedicina. Dois meninos passaram no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia em São João da Boa Vista (em Mecatrônica e Química) e outro gabaritou na redação de uma universidade privada, que lhe ofereceu 100% de bolsa. Ele, entretanto, pretende prestar vestibular para tentar Educação Física na Unicamp. “Estamos em êxtase. Não esperávamos tantas aprovações. É uma imensa alegria”, disse Rimoli. O cursinho pré-vestibular Colmeia – Limeira, coordenado por Rimoli e Maialle, ficou muito conhecido antes mesmo de se expandir para o modelo virtual. Só em Limeira, nas aulas presenciais, chegou a ter 1.361 inscritos para 350 vagas. Na pré-seleção, eles fazem uma avaliação socioeconômica e um vestibulinho com cotas.

Em 2021, na pandemia, em um prazo de 15 dias, o cursinho implantou um sistema de ensino virtual. “Foi um aprendizado, tanto nosso quanto dos estudantes da Unicamp que eram professores.”, relembra Josely Rimoli (foto). Na ocasião, o cursinho virtual abriu vagas para todos os que tinham feito inscrição.

Audiodescrição: imagem em preto e branco,

Com alcance agora nacional, em alguns meses, criaram-se turmas especiais para indígenas e quilombolas, populações com dificuldade de acesso que vivem em locais remotos. Quando surgiu a demanda da parte da Fundação Casa, os professores bolsistas da Unicamp precisaram preparar conteúdos específicos para cada turma.

O estudante de Matemática Alessandro Roberto de Assumpção Júnior, de 25 anos, assumiu pela primeira vez uma sala de aula no cursinho virtual do Colmeias, ainda que já tivesse feito estágio antes. As turmas de indígenas e de quilombolas e agricultores foram desafiadoras. “Com os adolescentes da fundação, foi tudo novo. Não podíamos ter muita informação sobre eles, o acesso que eles tinham ao material era diferente. Mas foi surpreendente a forma como eles abraçaram a ideia. Eram os que mais tiravam dúvidas e participavam”, lembra Assumpção. “Deu muito certo. Foi um dia muito feliz quando soubemos das aprovações.” Assumpção continua dando aula no cursinho virtual como bolsista e acha importante que o programa cresça. “O Colmeias leva ajuda a pessoas que precisam ser ajudadas.”

Os estudantes de Engenharia da Computação João Pedro Vianini de Paula e Eduardo Augusto Simão Vasconcellos também deram aula no cursinho virtual do Colmeias. “Foi um trabalho bem diferente. No fim das contas, era bem gratificante quando eu percebia que eles estavam entendendo”, disse de Paula. Para Vasconcellos, o ponto mais desafiador foi a heterogeneidade das turmas e o pouco tempo de aulas que tiveram para passar o conteúdo. Foram seis meses e cada aula tinha 40 minutos. No final, perceberam as preferências de cada turma. Entre os indígenas, a maioria se interessava pela área médica (leia, abaixo, a história de Roseli Batalha Braga, indígena aprovada em Medicina). Entre os quilombolas, havia uma preferência por exatas. Os meninos da fundação eram os mais animados e participativos. Muitas vezes faziam perguntas que se conectavam com as experiências pessoais. “Dar aula é um processo em que você tem que se colocar no lugar do outro para ajudá-lo a entender alguma coisa”, acrescenta Vasconcellos. “O ato de ensinar é um aprendizado permanente”, conclui de Paula.

Para o diretor da unidade Fundação Casa Campinas, Júlio César Simão, “o cursinho virtual coroou o trabalho da fundação”, que é 90% voltado para a educação. “Eles aderiram e ficavam atentos ao horário da aula, que começa às 19h10 e vai até 21h”, conta. Há um ano na unidade de Campinas, Simão trabalha há 14 na Fundação Casa e diz que a maioria dos adolescentes da entidade chega lá por conta do tráfico de drogas. “Eles são aliciados. No geral, são meninos inteligentes. Uns dizem ‘eu fui traficar porque queria um tênis novo’”, testemunha.

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Da esq. para dir., Jùlio César Simão, Andrea Ramos, Andreza Tavares Ferreira: funcionários da fundação exaltam os frutos da parceria

É diferente ter um curso preparatório para o vestibular aqui dentro”, diz Andrea de Paula Ramos, coordenadora pedagógica. “Talvez nenhum deles tivesse esse acesso lá fora.” O interesse deles pela educação tem aumentado, diz Ramos. “A gente tem visto os frutos, o reflexo dessa parceria com a Unicamp”, diz Andreza Tavares Ferreira, supervisora técnica da região de Campinas. “As aulas são muito dinâmicas. Alguns servidores querem colocar seus filhos lá também.”

“O cursinho muda a perspectiva do jovem”, defende Santiago, que também identifica o surgimento de novas perspectivas para os estudantes da Unicamp que dão aula no programa Colmeias Unicamp. “A riqueza está na Fundação Casa, está na Penitenciária, está no escritório na rua e está dentro das universidades, com os estudantes que toparam fazer isso e fizeram com esmero. É isso que nós estamos vendo: a capacidade dos professores de mudarem a vida de seus estudantes”, defende a diretora da DeDH.

“O cursinho é isso. Ele está oferecendo aos meninos um sonho que eles não têm e, uma vez sonhando, eles podem não conseguir uma vaga na faculdade, mas eles vão criar outros sonhos”, defende Velho.

Audiodescrição: infográfico Cursinho Colméia
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Mas quem pode garantir o sonho com um outro futuro?

Santiago não vacila ao responder: “Essa missão é nossa mesmo. Faz parte do papel da universidade interferir positivamente nos rumos da sociedade”.

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ROSELI LEVA BATALHA NO NOME

A indígena do povo Kambeba – também chamado de Omágua –, do Alto Solimões (Amazônia), Roseli Batalha Braga conquistou a disputada vaga que desejava em Medicina depois de fazer o cursinho virtual pré-vestibular do Colmeias Unicamp, entre 2021 e 2022. A tatuagem no seu pulso esquerdo representa sua vida de altos e baixos. As linhas tatuadas mostram as oscilações de um eletrocardiograma. “Se não tiver altos e baixos, a gente morre”, diagnostica Braga, que ingressou em novembro de 2022 na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), do Rio Grande do Sul.

audiodescrição: Ilustração Abelha voando de Rafaela Repasch

Braga começou a estudar aos 12 anos e concluiu o ensino médio aos 22. Além de sua aldeia ficar distante da escola, quase 24 horas de barco a remo, ela tinha que trabalhar como babá e doméstica. Após idas e vindas à aldeia, mudou-se para São Carlos, onde um irmão e um primo já estudavam na universidade. Em 2016, ingressou na licenciatura em Química da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e continuou se esforçando para alcançar o sonho de ser médica. Atualmente, aos 43 anos, conseguiu. Depois de formada, pretende retornar à sua aldeia para levar saúde ao seu povo.

“Os médicos não indígenas ficam pouco tempo lá. Tem ainda a questão da língua, da comida, da falta de estrutura, da logística, do saneamento básico precário e do carapanã [mosquito]. Essa é a realidade da nossa saúde”, descreve Braga, que tem planos de levar até seu povo um projeto de tratamento de câncer.

Quando foi diagnosticada com câncer bilateral das mamas, em 2020, durante a pandemia, ela não desistiu. Já morava em São Carlos e acabara de retornar da Espanha, onde viveu 11 meses. Fez a cirurgia de retirada dos ovários em dezembro de 2022, para fins de prevenção e de estabilidade hormonal. Após fazer quimioterapia e radioterapia, perdeu os cabelos. Em seguida se matriculou no cursinho virtual do Colmeias, em 2021, para então ingressar em Medicina.

“Eu fazia aulas à tarde e à noite. Meus cabelos estavam nascendo. Em alguns concursos, fiquei em quarto lugar; em outros, em terceiro; e, em outro, fiquei em segundo. Sempre foi um sonho, que parecia impossível por causa da concorrência. Minha avó foi parteira por quase 30 anos. Eu sempre a acompanhava nos partos”, recorda.

Seu gosto pela medicina também está relacionado à grande farmacologia que existe na Amazônia, com suas essências, óleos e plantas. “Não só para usar o conhecimento científico farmacológico e químico dos medicamentos mas também para o tratamento fitoterápico, valorizando nosso conhecimento. E pelo grande descaso estatal com as comunidades indígenas.”

audiodescrição: Ilustração de Rafaela Repasch

Até 2016, Braga vivia na região dos Kambeba, distribuídos em 15 comunidades. “Algumas são tão distantes que são necessários quatro dias de barquinho para chegar.” Segundo Braga, há cerca de 2 mil famílias da área que formaram uma organização. Eles têm rádio, escola, cartilha e, desde 2009, fazem a revitalização da língua tupi-guarani, quase extinta durante o período da colonização.

“A nossa cacica é articulada, formada em Pedagogia, faz mestrado em Linguística no Museu do Rio de Janeiro, então tudo isso ajuda a dar visibilidade para a articulação das políticas, porque, quando o território não é demarcado, fica difícil”, diz Braga. Essa cacica ocupa o cargo há mais de 20 anos e sempre manteve articulação com as lideranças de base e com outros caciques. “As questões das terras e do garimpo são complicadas. Não temos recursos. Vivemos da pesca, da caça e da produção agrícola nativa, como banana, verdura e frutas.”

Seus pais ainda moram na cidade onde Braga nasceu, São Paulo de Olivença. E sua avó completa 88 anos este ano. Entre os nove filhos do casal, três estão na universidade: a própria Braga, uma irmã que mora em Sorocaba e estuda Administração de Empresas e o irmão que estuda na Ufscar. O primo que estava em São Carlos desde 2010 também está fazendo Medicina em Pelotas, já no terceiro semestre. Esse primo também é formado em Biotecnologia e está terminando um mestrado na área. Por enquanto, ninguém da aldeia se formou em Medicina. “Só temos enfermeiras.” Em breve, contudo, haverá parentes Kambeba médicos de volta a suas terras.

Os Omágua, que significa o que nasceu das águas, possuem cerca de 33 terras demarcadas na região e outras 44 apenas reconhecidas pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). “Meu povo ensina que a gente não tem que olhar para as dificuldades, mas para as oportunidades. A vida é desafiadora, mas a gente tem que ter sempre expectativas positivas”, diz Braga, que deve concluir o curso de Medicina entre 2028 e 2030.

“Meu sonho é fazer minha residência na Unicamp”, conclui ao fim de nossa conversa, travada de forma remota, pelo Google Meet. “Mantenho minha fé, acredito muito em Deus”, diz a indígena estudante de Medicina que também tatuou uma árvore da vida, nas costas. Na imagem, escreveu duas palavras aludindo a conceitos cunhados pelo educador e filósofo pernambucano Paulo Freire: “esperança” e “esperançar”. “Esperar é diferente de esperançar, que significa atitude, ir atrás, se levantar.”

FICHA TÉCNICA
Edição: Raquel do Carmo Santos
Texto: Adriana Vilar de Menezes
Fotos: Felipe Bezerra
Vídeos: Marcos Botelho
Ilustrações: Rafaela Repasch
Arte: Alex Calixto, Paulo Cavalheri
Design web: Renan Barreto
Edição de vídeo: Kleber Casablanca
Edição de áudio: Octávio Fonseca da Silva
Coordenação: Álvaro Kassab, Laura Freitas Rodrigues, Raquel do Carmo Santos


Reprodução: Portal da Unicamp (publicado em 27 de junho de 2023)

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