Dia da consciência de cada um de nós


Como comemoração de um fato, cada efeméride é uma oportunidade para lembrarmos acontecimentos e pautas importantes para nos reconhecermos e nos aperfeiçoarmos como sociedade. Não raro, são fatos que nos convocam a tomar posição, individual e coletivamente. 

É por isso que o Observatório de Direitos Humanos tem cuidado de lembrar, uma a uma, cada efeméride expressiva de nossa extensa e diversa pauta em favor dos direitos humanos. Nosso calendário de efemérides está sempre disponível, mas, sobretudo, está sempre aberto a acolher pautas novas ou por nós relegadas, comprometidas com a dignidade da vida, em todas as suas formas.

São numerosas as efemérides em favor da vida, mas talvez poucas sejam hoje tão urgentes quanto esta que nos chama, individual e coletivamente, à consciência sobre a persistente injustiça originária da discriminação étnico-racial, e desdobrada em tantas dimensões da vida. Essa injustiça tem bases históricas, alimentada por teorias e práticas discriminatórias que justificaram por séculos a insustentável exploração de seres humanos, e continua a desafiar a construção da vida digna, desdobrada em injustiça social, econômica, educacional, cultural, ambiental etc. 

O preconceito, a discriminação, a naturalização dessa injustiça nos fragiliza como sociedade, como humanidade, como democracia, e escancara a fragilidade do princípio da igualdade, declarado de modo inequívoco em tantos documentos fundadores, como em nossa Constituição: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…” 

Mas também nos empobrece, na medida em que não permitimos como sociedade que parcela significativa da população expresse toda sua potencialidade, intelectual, criativa, cultural, bem como suas sensibilidades que podem ser a riqueza compartilhada. A permanente negação da presença multidimensional de outros povos de diferentes matizes, especialmente do povo negro, faz de nós uma sociedade sem cor e sem vida, nos faz menores. 

Pior quando essa negação se transforma em violência e a política de morte e da eliminação prevalece na forma de uma necropolítica. Precisamos ser todas e todos corajosos, negros, brancos, indígenas e todos os povos no enfrentamento do racismo. A luta pela igualdade, contra o racismo e pela liberdade não tem trégua. Mas, que seja uma luta de união, comunitária e de paz, empoderada pelo convívio e presença do outro na multiculturalidade. Não devemos nos esquecer que lutar pela multiculturalidade é lutar pela terra, pelo ambiente, pela natureza e pela vida. Uma luta que nos une.

A efeméride que nos convoca hoje é o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, comemorado, anualmente, no dia 20 de novembro, data da morte em combate do líder negro Zumbi dos Palmares, em 1695. Como lei federal, a data a ser lembrada por todos nós tem exatos 10 anos. Mas a história que nos coloca diante desse dia de consciência é muito mais ampla, e isso sem considerar a luta por dignidade em quilombos e outras estratégias de resistência e construção de liberdade.

Manifestações de desagravo ao racismo e reivindicações em favor da igualdade e da superação das injustiças são diversas e numerosas. Mas tomam forma como um programa de ação capaz de mobilizar ao mesmo tempo a luta antirracista e uma simbologia do despertar crítico a partir da década de 1970 no Brasil. A celebração do primeiro dia da Consciência Negra no Clube Náutico Marcílio Dias, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, tem sido reconhecida como um referencial na construção do protagonismo negro nessa luta. 

Em 1978, o ato do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, também foi fundamental na construção dessa luta e de sua visibilidade, assim como as marchas do Centenário da Abolição, dez anos depois  (1988),  e a  Marcha  do  Tricentenário  da morte de  Zumbi  (1995), entre outras. Do desagravo diante do racismo à luta antirracista, cada vez mais a necessidade de respeitar a diversidade étnico-racial e de promover espaços plurais exige, de cada um de nós, o compromisso em fortalecer cotidianamente oportunidades para eliminar toda forma de racismo, de discriminação.

Da resistência à celebração, das manifestações e protestos às disputas políticas, da comemoração à visibilidade no espaço público, essa luta é, permanentemente, um chamado à consciência. E não apenas à consciência negra, mas à consciência de todos nós sobre a inaceitável injustiça que contamina cada cidadão, cada cidadã, toda vez que uma discriminação nos atinge e nos enfraquece como sociedade e como aposta no futuro.

É responsabilidade do Estado e da sociedade zelar para que toda pessoa seja tratada com igualdade e dignidade. Mas os marcos legais que resguardam esses princípios são recentes, não têm 20 anos. A legislação indutora de uma política educacional voltada para a afirmação da diversidade cultural e para uma educação das relações étnico-raciais é pioneira, e vigora a partir dos anos 2000. E faz apenas 11 anos que o Brasil tem como referência o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. 

Esse curto período de vigência das proteções legais, que contrasta com a vivência diária de desigualdades e injustiças, impõe a nós não apenas a tomada de consciência mas sobretudo a tomada de posição diante do racismo. O respeito ao que determina a legislação é seu ponto de partida, e nos envolve diretamente. Ela compromete também as instituições de ensino superior públicas e privadas a resguardar os princípios da ética em pesquisa e apoiar grupos, núcleos e centros de pesquisa que desenvolvam temáticas de interesse da população negra, bem como em incorporar nas matrizes curriculares dos cursos de formação de professores temas que incluam valores concernentes à pluralidade étnica e cultural da sociedade brasileira.

O chamado de cada pessoa à consciência se dá também em outro sentido igualmente urgente, naquele que convoca a compreender as injustificáveis violências que se repetem, ordinariamente, afetando dimensões da dignidade da vida que deveriam ser garantidas indistintamente: saúde, educação, cultura, esporte e lazer, acesso à terra e à moradia adequada, direito à liberdade de crença e de culto, promoção da justiça, inclusão no trabalho, pluralidade nos meios de comunicação etc. A tomada de consciência à qual uma efeméride como esta nos clama requer a compreensão de que, sem a desconstrução dos mecanismos múltiplos de reprodução de desigualdades, nem nosso ambiente, nem nossa democracia, nem nosso futuro, nem a vida digna para cada um de nós terá chance de prosperar. 

Silvia Maria Santiago – diretora – DeDH

Wagner de Melo Romão – diretor associado – DeDH

Josianne Francia Cerasoli – coordenadora do ODH

Uma cronologia de marcos legais, para não nos esquecermos da consciência de todos :

2002 – Lei municipal institui em Campinas o dia 20 de novembro, dia da Consciência Negra, como feriado municipal
https://cm-campinas.jusbrasil.com.br/legislacao/324306/lei-11128-02 

2003 – institui obrigatoriedade temática da história e cultura afro-brasileira na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/2003/L10.639.htm#art1 

2008 – institui obrigatoriedade temática da história e cultura afro-brasileira e indígena na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.htm

2010 – Estatuto da Igualdade Racial
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm

2011 – Institui o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12519.htm 

2004-2015 – Pareceres e resoluções sobre educação para as relações étnico-raciais
http://portal.mec.gov.br/secretaria-de-regulacao-e-supervisao-da-educacao-superior-seres/323-secretarias-112877938/orgaos-vinculados-82187207/12988-pareceres-e-resolucoes-sobre-educacao-das-relacoes-etnico-raciais

2013 – regulamentação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir)
https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/igualdade-etnico-racial/acoes-e-programas/sinapir

Referências

Oliveira Silveira. O vinte de novembro: história e conteúdo. In: Petronilha Beatriz G. e Silva; Valter R. Silvério (org). Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília – DF: Inep/MEC, 2013. p.21-40

https://issuu.com/bibliotecaifspbirigui/docs/educacao_e_acoes_afirmativas 

Flávia Rios. O protesto negro no Brasil contemporâneo (1978-2010). Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n.85, 2012. https://www.scielo.br/j/ln/a/GZGfkVrFDVQyzs7XgXpG83D/?format=pdf&lang=pt 

Assista também ao vídeo com o depoimento de Silvia Maria Santiago, Diretora Executiva de Direitos Humanos da Unicamp: